DESPEDIDA DA CAMPANHA

Como Yeda resolveu resistir

Acossada por denúncias e protestos durante seu governo,

Yeda Crusius usou a Justiça, o apoio do sobrenatural e sua candidatura à reeleição como forma de resistência

O dia que pode ser considerado como o símbolo da derrota de Yeda Crusius na sua tentativa de reeleição, o dia que é a marca de todas as agruras de seus quatro anos de governo, esse dia ela define de uma forma surpreendente:

– Foi o dia da minha libertação.

É o 16 de julho de 2009.

Às 7h30min daquela manhã nem tão fria em seus 15ºC, Yeda sobressaltou-se com gritos que partiam da calçada em frente à sua casa, na Rua Araruama. Assustada, correu à janela para ver o que ocorria. Deparou com a visão de dezenas de manifestantes organizados pelo Cpers postados atrás da grade do jardim, gritando palavras de ordem contra ela, pedindo sua deposição. Foi a primeira vez que um governador do Estado enfrentou uma manifestação diante de sua residência particular. O ato gerou polêmica no país e, segundo Yeda, trauma em seus netos, que naquele momento se preparavam para ir à escola.

– Até hoje, ninguém sabe o que aconteceu do meu lado, naquele dia – diz a governadora. – Eu não tinha fotógrafos. Eles chamaram a imprensa, eles prepararam tudo. O que eu podia fazer? Peguei minha filha, fui para o portão e disse: “Afastem-se! Os meus netos vão para a escola!” E eles foram para a escola.

Terminado o protesto, Yeda continuou em casa, nervosa. Fez algumas ligações. Pediu proteção à Brigada Militar. Pediu conselhos ao ex-governador Antônio Britto. Finalmente, ligou para seu advogado, Fábio Medina Osório, e pediu providências:

– Quero entrar com processo contra todos! Contra todos!

– Ela estava tensa naquele dia – confirma o advogado. – Ela sofreu como mãe e como avó. Tinha de reagir.

A reação começou com o silêncio. Yeda subiu a Serra, passou a despachar de Canela e não falou mais publicamente, numa decisão que lembra com a imponência de quem usa a terceira pessoa para falar de si mesmo:

– Não permitiria mais que botassem o microfone na boca da governadora!

Nesse meio tempo, continuou procurando ajuda. Diz ter encontrado apoio em próceres da sociedade, como o arcebispo dom Dadeus Grings, e em pessoas do povo que a viam e lhe manifestavam simpatia.

– Os anônimos são um exército... – consola-se.

A essa altura, Yeda acreditava que a situação havia melhorado, que tudo ia se acalmar. Então, sofreu novo golpe. Em 5 de agosto, o Ministério Público Federal pediu seu impeachment em entrevista coletiva. Horas depois, alguém que ela define como “muito próximo” lhe disse:

– Você está morta politicamente.

– Ali eu decidi concorrer – revela. – Não podia deixar como estava. Tinha de mostrar as ações do governo, tinha de mostrar que não havia nada contra mim, eu que não sou capaz de pegar a 13ª laranja, se o vendedor erra na dúzia.

Ao tomar a decisão, Yeda usou a palavra que repetiu várias vezes ontem à noite, em sua primeira manifestação pública depois de confirmada a vitória de Tarso Genro: resistência.

– Quando resolvi concorrer, anunciei a minha resistência – afirmou Yeda ainda em meio à campanha.

– Os um milhão cento e vinte mil gaúchos e gaúchas que nos deram seus votos representam a resistência democrática – afirmou ontem na sede do PPS, na Rua Pelotas.

Como de costume, Yeda manteve a altivez durante seu pronunciamento após a eleição, embora se recusasse a responder às perguntas dos jornalistas. Esforçou-se para valorizar os eleitores que lhe deram cerca de 18% dos votos, ressaltou o seu entusiasmo e a sua felicidade, mas o clima no comitê não ajudava. Às 17h, quando se encerrou a votação, havia uma única eleitora esperando por ela na Rua Pelotas: Itália Natividade Ausani, que se orgulha de ter nascido no mesmo 26 de julho que a governadora, só que 10 anos antes. Dona Itália contou que ela e a governadora são protegidas pelos mesmos anjos da guarda.

– Mas não posso revelar os nomes dos anjos – desculpa-se.

Anjos e outros assuntos sobrenaturais apetecem a governadora. O que se evidencia neste seu tão destacado processo de resistência, em que somou deliberações práticas com outras menos tangíveis. Buscou inspiração no passado. Leu a biografia de Oswaldo Aranha escrita pelo brazilianista Stanley Hilton, ouviu alguém compará-la a Getúlio Vargas e, refogando todas essas informações, deduziu:

– Sou um Flores da Cunha de saias.

Yeda resolveu imortalizar em bronze a sua admiração pelo ex-governador. Encomendou ao escultor russo Iouri Petrov um busto de Flores da Cunha e o inaugurou com pompa no início de novembro de 2009. Ainda entusiasmada com a biografia escrita por Hilton, “que é impossível parar de ler”, planeja inaugurar um busto de Oswaldo Aranha até o fim de 2010.

As esculturas enfeitarão o Palácio Piratini, que mandou reformar. O palácio, agora, serve para isso mesmo: para bonito. Com a ideia de afastar-se das pressões da Praça da Matriz e aproximar-se do secretariado, Yeda mudou o gabinete para o 21º andar do prédio do Centro Administrativo, reservando o Piratini para solenidades oficiais.

Foi despachando nas alturas de seu novo gabinete que ela recebeu aquele que considera o mais eloquente “sinal” de que sua resistência valeria a pena. No final da tarde de 16 de outubro de 2009, estava reunida com o secretário da Fazenda, Ricardo Englert, quando ouviu ruídos estranhos vindos do teto. Parou de falar. Apurou os ouvidos.

– É bicho – concluiu. – E é grande.

Pôs os assessores a investigar. Depois de alguma azáfama, eles descobriram uma coruja aninhada no vão do ar-condicionado do gabinete. A governadora ficou encantada.

– É um sinal! – anunciou. – Um sinal!

Tomou a coruja como sua protetora. Informou-se a respeito. Leu A Lenda dos Guardiões, livro de ficção juvenil de Kathryn Lasky em que todos os personagens são corujas. Há corujas boazinhas e malvadas. O leitor esbarra com passagens do tipo:

“Talvez tivesse sido uma leve pontada na moela de Soren ou um fraco acelerar do seu coração, mas em algum momento perto do meio-dia, enquanto o ninho estava tomado pelo sono, a jovem coruja-de-igreja sentiu que algo estava um tanto errado, incompleto. Não era a sensação fria e assustadora de medo que podia se infiltrar na moela e enfraquecer as asas; não, nada disso. Mas algo não estava certo. Soren piscou, abriu os olhos e, na luz obscura e leitosa do dia que se infiltrava no ninho, viu apenas mais duas corujas. Crepúsculo se fora!”

Crepúsculo partiu, mas não a coruja da governadora, que fixou residência no sótão do poder maior do Estado e constituiu família. Mais três corujinhas apareceram no ninho, para gáudio de Yeda, que as mandou fotografar e publicou a imagem em seu blog.

As atividades da família aviária são vigiadas de perto pelos humanos do governo do Estado. Um mês atrás, quando o sargento que trabalhava na Casa Civil foi preso por espionagem, a coruja-mãe caçou um rato e levou-o para o alto, a fim de alimentar os filhotes. Antes de servi-lo, decepou-lhe a cabeça com uma bicada certeira. Carregou apenas o corpo macio e ensanguentado para o ninho. As assessoras enojaram-se com a cena:

– Aaaargh...

Yeda vibrou, os punhos cerrados de alegria. Viu mais um sinal:

– É a coruja protetora devorando os ratos que nos atacam!

O sangue do rato morto secou no parapeito do 21º andar do Centro Administrativo. De seu gabinete, a governadora chama o visitante e aponta um dedo orgulhoso para mancha escura. Para ela, eis ali um emblema da sua luta, do seu enfrentamento contra os adversários e, como não cansa de repetir, da sua resistência.

AVALIAÇÂO DA DERROTA

Foi com lágrimas, na despedida do comitê de campanha do PPS, em Porto Alegre, que a governadora Yeda Crusius e o seu candidato a vice, Berfran Rosado, deram por encerrada a batalha eleitoral de 2010. Eram 21h30min de ontem quando Yeda embarcou no carro oficial da campanha e deixou para trás o sonho de ser a primeira governadora reeleita do Estado. Antes, reuniu-se por mais de uma hora e meia com seu staff político e só reconheceu a derrota depois que o quadro – estadual e nacional – se tornou irreversível. Então, encarou os jornalistas e mirou o futuro: “vou continuar na luta pela resistência democrática deste país”.

FLÁVIO ILHA